A cobertura da vacinação infantil enfrenta hoje um retrocesso sem precedentes nas últimas três décadas, colocando em risco a vida de milhões de crianças ao redor do mundo. As entidades globais responsáveis pelo controle e prevenção de doenças — OMS, Unicef e Gavi — soam o alerta diante dessa queda acentuada que ameaça reintroduzir enfermidades até então sob controle ou eliminadas em diversas regiões.
Em 2023, aproximadamente 14,5 milhões de crianças ficaram sem nenhuma das vacinas de rotina no mundo — um número superior aos 13,9 milhões de 2022 e aos 12,9 milhões de 2019. A doença mais exemplar desse alarmante cenário é o sarampo: a vacinação para a primeira dose atingiu apenas 83% das crianças em 2023 — bem abaixo dos 95% necessários para conter surtos — e já foram notificados 10,3 milhões de casos naquele ano, um crescimento de quase 20% em relação a 2022. A situação é igualmente crítica para outras vacinas — como a DTP (difteria, tétano e coqueluche), poliomielite, HPV e meningite —, que registraram quedas expressivas nas coberturas e abriram espaço para retrocessos devastadores.
Esse declínio foi acelerado por múltiplos fatores que se entrelaçam: os cortes de financiamento internacional — em especial dos Estados Unidos — comprometeram programas de saúde em quase metade dos países de renda baixa e média, afetando desde o abastecimento de vacinas até a vigilância de surtos; a desinformação, impulsionada pelo movimento antivacina, ganhou força com teorias conspiratórias e retórica de “liberdade individual”, enfraquecendo a confiança pública nas vacinas; e o crescimento populacional, as crises humanitárias e conflitos fizeram com que milhões de crianças vivessem em locais com acesso limitado ou inexistente à cobertura vacinal.
O Brasil não está imune a esse quadro global. Em 2019, o país ainda mantinha uma cobertura de 93% para a tríplice viral, mas em 2021 esse índice despencou para apenas 71,5%, deixando cerca de 700 mil crianças sem proteção. A poliomielite, que já havia sido erradicada na região, voltou à lista de risco alto, com cobertura abaixo do ideal de 95%, alcançando apenas cerca de 77% em 2022. Embora o Brasil tenha conquistado avanços posteriores — como a redução drástica de crianças não vacinadas com DTP nos anos seguintes —, os números mostram que a recuperação ainda é incerta frente ao cenário global.
A OMS, o Unicef e a Gavi destacam que a vacinação é a “melhor compra em saúde”: por cada dólar investido, o retorno chega a 54 dólares em benefícios evitados em tratamentos e ganhos sociais. As vacinas já salvaram cerca de 150 milhões de vidas nas últimas cinco décadas, com mais de 4 milhões de mortes evitadas anualmente. Mas agora, com cortes no financiamento e falta de mobilização política, esse progresso corre o risco de se perder. A Gavi, que desde 2000 já vacinou centenas de milhões de crianças, tenta arrecadar ao menos 9 bilhões de dólares até junho de 2025, visando proteger outras 500 milhões entre 2026 e 2030.
A recente Semana Mundial da Imunização (abril de 2025) trouxe esse tema à luz, com líderes de saúde pedindo atenção política imediata e investimento contínuo para reverter o impacto da pandemia, dos cortes de apoio internacional e do avanço da desinformação. A recomendação conjunta dessas entidades é clara: programas de imunização de rotina precisam ser fortalecidos, campanhas de “catch-up” ampliadas e a confiança da população restabelecida, especialmente em comunidades afetadas por conflitos e vulneráveis à proliferação de fake news.
A urgência é real e global. Enquanto a imunização não for reforçada, a humanidade poderá assistir ao retorno de doenças como difteria, coqueluche, febre amarela e meningite em regiões agora desprotegidas. Os ganhos sanitários, sociais e econômicos podem ser duramente revertidos, com impacto direto em crianças, famílias e sistemas de saúde. A resposta exige liderança política, cooperação internacional, recursos firmes e nova mobilização da sociedade.