O Universo Cinematográfico da Marvel vem passando por um momento de transição. Após mais de uma década construindo uma mitologia de heróis idealizados, com valores absolutos e inimigos claramente definidos, a nova fase aponta para algo mais complexo: personagens falhos, motivações ambíguas e dilemas que não se resolvem com um estalo de dedos. O novo longa Thunderbolts*, que estreia em 02 de maio, é a consolidação mais madura dessa virada. O filme traz sensibilidade, densidade dramática e um controle notável de ritmo e tom, sem jamais esquecer que ainda é, sim, uma obra do MCU, com toda a ação e irreverência que esse universo carrega.
Thunderbolts* parte de uma premissa simples, mas poderosa: o que acontece com os que sobraram quando os heróis vão embora? O mundo continua se reerguendo dos eventos de Capitão América: Admirável Mundo Novo. Os Vingadores não existem mais e a confiança nas figuras heroicas desmoronou. Neste vácuo, surge Valentina Allegra de Fontaine, uma agente manipuladora que entende o mundo como um tabuleiro político e militar. Ela não quer heróis. Quer armas humanas, utilizáveis, descartáveis. E para isso, recruta aqueles que já foram quebrados por dentro.
Personagens
Yelena Belova, outrora uma assassina moldada pela Sala Vermelha, agora é alguém à deriva. Ela perdeu sua irmã, Natasha, e com ela se foi qualquer senso de estabilidade. No início do filme, Yelena está sendo literalmente apagada dos registros e é esse simbolismo que atravessa todo o filme: personagens que o sistema tenta apagar, mas que ainda resistem. Bucky Barnes retorna como o Soldado Invernal, ainda assombrado pelos crimes que cometeu sob controle mental, mas tentando fazer a coisa certa — mesmo sem saber o que isso significa mais.
Já o Agente Americano, John Walker, permanece com seu senso distorcido de justiça, tentando provar que ainda é útil, mesmo quando ninguém pediu isso. A Fantasma, instável física e emocionalmente, busca algum tipo de cura, ou pelo menos paz. Alexei Shostakov, o Guardião Vermelho, funciona como um alívio cômico trágico: um homem preso ao passado, cuja maior habilidade é esconder sua frustração atrás de bravatas. E no centro de tudo está Bob Reynolds, o Sentinela, um dos personagens mais poderosos do MCU, mas também um dos mais instáveis. Dentro dele habita o Vazio, uma entidade destrutiva nascida da sua psique fragmentada. O maior inimigo do filme é interno.
É aí que Thunderbolts* se diferencia radicalmente. Não se trata de um exército enfrentando alienígenas ou uma luta contra um novo vilão interdimensional. A maior batalha é pessoal, íntima, dolorosa. O Vazio não apenas ameaça destruir cidades — ele representa o colapso mental, a dor não resolvida, a raiva sem direção. E ao dar rosto e corpo a essa entidade, o filme propõe uma metáfora poderosa: todos nós temos monstros internos, e a luta contra eles exige mais coragem do que qualquer confronto físico.
Ainda assim, a ação está presente, e é feita com estilo. As cenas de combate são intensas, filmadas com câmera mais próxima, trazendo um senso de urgência e vulnerabilidade. Não há coreografias exageradas nem sequências inverossímeis. As lutas são sujas, dolorosas, cheias de tropeços. Morre-se rápido. A violência aqui tem peso. Quando alguém é ferido, sentimos as consequências. Há momentos de brutalidade emocional tão marcantes quanto os de O Soldado Invernal — talvez a obra do MCU com a qual Thunderbolts* mais compartilha DNA.
A narrativa
Apesar do tom mais sério, há espaço para humor, mas é um humor mais sarcástico, às vezes incômodo, nascido do desespero dos personagens. O Guardião Vermelho é um ótimo exemplo disso: por trás de suas piadas, existe alguém que não sabe como envelhecer. Yelena, por outro lado, tem tiradas que soam como mecanismos de defesa. Essa quebra de tensão funciona bem, pois está sempre a serviço do desenvolvimento emocional, e não como uma distração gratuita.
A estética do filme também acompanha sua proposta narrativa. As cores são mais frias, acinzentadas, com uma fotografia que emula um certo realismo urbano. Há pouca luz, muito concreto, chuva, ambientes fechados e claustrofóbicos. A trilha sonora é igualmente estratégica. Em cenas com o Vazio, os graves dominam, evocando sensações de pânico e impotência. Já em momentos de descoberta entre os personagens, há breves respiros de melodia e silêncio. Tudo contribui para uma experiência sensorial imersiva.
O roteiro se destaca pela construção de relações entre personagens que, à primeira vista, não têm por que confiar uns nos outros. Mas é justamente nessa desconfiança que nascem os vínculos mais fortes. Há cenas de diálogo genuinamente comoventes, principalmente entre Yelena e Bucky, dois personagens que conhecem bem o peso de ser usado como arma. A forma como o grupo vai, aos poucos, construindo uma noção de comunidade imperfeita, de família disfuncional, é uma das grandes forças do longa.
Thunderbolts* também não ignora o universo em que está inserido. Há referências sutis a eventos anteriores, menções a personagens ausentes e uma contextualização que faz sentido dentro da cronologia do MCU. A ausência de qualquer citação direta a Demolidor: Renascido, por exemplo, é notável, já que ambas as histórias se passam em Nova York. Essa omissão não chega a comprometer o enredo, mas talvez represente uma oportunidade desperdiçada de integrar melhor os personagens urbanos da Marvel. Ainda assim, o filme planta várias sementes para o futuro, inclusive para possíveis confrontos entre diferentes equipes de anti-heróis.
Há uma ousadia silenciosa em Thunderbolts*. Não é revolucionário em sua estrutura, mas é maduro em sua execução. Ele entende que o público já viu portais se abrirem no céu, realidades se colidirem, deuses morrerem. Agora, quer algo mais próximo. Quer ver pessoas lidando com culpa, perda, medo, e, acima de tudo, com a possibilidade de mudar. Thunderbolts* oferece isso. É um filme sobre não se sentir suficiente, sobre falhar repetidamente e ainda assim tentar mais uma vez. E ao fazer isso, transforma figuras secundárias, esquecidas ou rejeitadas em protagonistas de uma história relevante, tocante e inesperadamente poderosa.
O resultado é um dos filmes mais humanos da Marvel até agora. Thunderbolts* não precisa de trajes coloridos ou discursos inspiradores. Ele precisa apenas de seus personagens olhando nos olhos uns dos outros e dizendo: “Eu também não sei o que estou fazendo. Mas estou tentando.” Isso, no fim das contas, é mais heróico do que qualquer escudo ou martelo. E para os curiosos, sim, o filme tem cena pós- créditos!